Número de vítimas em tragédia na serra do RJ pode ser 10 vezes maior, dizem entidades
Vale conferir a matéria especial de Andressa Canejo, do G1 Região Serrana do Rio, sobre números conflitantes de vítimas da tragédia de 2011 na região, que pode ter matado mais de 10 mil pessoas.
O número de vítimas, entre mortos e desaparecidos, da maior tragédia da Região Serrana do Rio , em 2011, pode ser superior ao registrado na época. Segundo o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) de Petrópolis e associações das vítimas, entre outras entidades de Teresópolis, Nova Friburgo e Petrópolis, cerca de 10 mil pessoas podem ter morrido ou desaparecido nas chuvas que atingiram a região naquele ano.
Os dados oficiais do Governo do Estado apontam 918 mortos, e o Ministério Público Estadual, 103 desaparecidos. A suposta subnotificação de mortes foi identificada através de relatos de pessoas que moravam nas áreas atingidas e que não conseguiram oficializar a perda de parentes.
Divergência de números
Além do relato de parentes, as entidades levam em conta a divergência entre o número computado de mortos em determinadas localidades e a quantidade de “relógios de luz” que havia nestes locais, segundo a própria concessionária de energia elétrica, a Ampla.
“Acreditamos que aproximadamente 10 mil pessoas foram afetadas. Haver pouco mais de mil [mortos e desaparecidos], como é divulgado, é um número irreal pela proporção da tragédia”, afirma o frei Marcelo Toyansk, que está à frente da Associação de Vítimas de Teresópolis (Avit).
Para as entidades, os relógios de luz nos locais evidenciam que mais pessoas viviam nas regiões que foram completamente devastadas, como é o caso do bairro Córrego D’antas, em Nova Friburgo.
O G1 esteve no local e constatou que as marcas da tragédia ainda são evidentes. Veja aqui a galeria de fotos.
Desaparecidos
Após quatro anos do desatre, que está entre os maiores do país, a rede de associações destaca que os desaparecidos já podem ser considerados, na verdade, mortos.
“Famílias sumiram inteiras e não teve quem ‘pleiteasse’ o corpo. Como morrer é um ato jurídico, é preciso que alguém reivindique o corpo, dando entrada da Justiça”, afirma a advogada do CDDH, Francine Damasceno, que acabou de concluir doutorado sobre as chuvas de 2011 na Região Serrana e política de reconstrução.
“Enquanto o judiciário não declara a morte, a pessoa é desaparecida. Se ninguém reivindicar, a pessoa é uma abstração”, diz.
Lista
Uma lista extraoficial com o nome de mortos que não teriam sido computados começou a ser construída e o assunto será debatido durante um seminário nacional em outubro, No Rio de Janeiro.
O encontro tem como objetivo chegar mais perto do que os envolvidos consideram um número real de vítimas para torná-lo oficial, o que vai impactar não apenas na vida de cada sobrevivente, mas também na realidade dos municípios afetados. Muitas famílias ainda aguardam o reconhecimento das mortes na Justiça para receber auxílios e benefícios.
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“Perdi minha irmã com três sobrinhas e duas netinhas dela, além do genro. Só conseguimos encontrar o corpo de uma criança. Um dos filhos desse rapaz (genro) era menor e não recebe a pensão do pai, pois não tem como provar a morte dele”, lamentou o zelador aposentado, Moisés de Paula Ângelo, de 59 anos, que morava em Campo Grande, em Teresópolis.
Os depoimentos estão sendo colhidos por organizações que incluem as associações do Côrrego Dantas, em Nova Friburgo; das Vítimas de Teresópolis (Avit); do Vale do Cuiabá (Petrópolis); o Fórum de Habitação de Teresópolis e a Presença Samaritana (instituição da igreja).
O G1 questionou a Secretaria de Estado de Defesa Civil, que atuou nos municípios afetados na época da tragédia, sobre a suposta subnotificação das mortes apontada pela rede de associações.
O órgão afirmou que a questão deveria ser levantada com o Ministério Público Estadual, que informou que somente a Defesa Civil pode, oficialmente, fornecer esses dados. A Defesa Civil Estadual ressaltou que o trabalho de resgate realizado em janeiro de 2011 somente foi finalizado após não haver mais possibilidade de encontrar vítimas com vida e corpos. “Os dados oficiais registrados no sistema somam 918 óbitos na tragédia”, confirma a nota.
CDDH em Petrópolis (Foto: Andressa Canejo/G1)
Provas
A estimativa, segundo a rede de associações, é de que somente em Teresópolis cerca de cinco mil pessoas tenham morrido, número bem diferente dos menos de 400, como foi computado oficialmente.
Em algumas comunidades que desapareceram, o governo aponta que existia uma quantidade de famílias bem abaixo do número de “relógios de luz” registrados na concessionária de fornecimento de energia.
“Em uma dessas comunidades, os dados oficiais apontam para a existência de 100 famílias, enquanto a concessionária informa que havia 3 mil relógios de luz, ou seja, no mínimo 3 mil famílias”, afirma Daniela Egger, geógrafa e assessora jurídica popular do CDDH.
O frei Marcelo Toyansk, da Avit, questiona o cálculo feito em Campo Grande. “Ouvimos muitos relatos, como o de uma pessoa que perdeu toda a família, de 30 a 40 parentes, e simplesmente não encontrou nenhum corpo. No local moravam cerca de cinco mil pessoas e a grande maioria estava em casa na hora da tragédia. Como o bairro praticamente some e contabilizam de mortes, em toda a cidade, menos de 400 pessoas?”, questiona o frei.
Tragédia ainda faz parte do cenário
O G1 esteve no bairro Córrego D’antas, em Nova Friburgo, um dos mais atingidos pela tragédia de 2011. As marcas deixadas pelas chuvas podem ser vistas até hoje nas casas que ainda não foram demolidas.
O local possui muito entulho e está praticamente abandonado. Na Rua Erico Hees, por exemplo, muitas casas foram condenadas pela Defesa Civil, e os escombros permanecem no lugar.
Algumas intervenções foram realizadas, como a reconstrução da ponte sobre o Córrego D’antas III, feita pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER-RJ). A Secretaria de Obras do Estado está fazendo duas encostas, previstas para serem concluídas em outubro desde ano, e iniciou a revegetação do córrego, também prevista para ser entregue ainda este ano, em dezembro.
O Instituto Estadual do Ambiente fez a proteção das margens do córrego através da execução de enrocamento e implantação de grama nos taludes em um trecho com cerca de três quilômetros.
Problema social
Para a advogada Francine Damasceno, do CDDH, a questão do número de mortos traz à tona um problema político, que é o de não enxergar a realidade.
“A pessoa não existe como pobre, enquanto vivo, na construção das políticas públicas que reduzem a vulnerabilidade, e não existe quando morre também. É uma crítica, pois o estado não está preparado para absorver essa demanda. Ele não olha para esse povo. Morreu é problema de quem morreu”, afirmou Francine.